A madrugada acomodou-se. Fria, escura e silenciosa, adensando à medida que o relógio avança e o nervosismo aumenta. Faltam poucos minutos para as 4 horas. Fala-se pouco. Porque não se pode. Ou melhor, não se deve fazê-lo. As frases são curtas e escolhem-se bem as palavras, caso contrário, sofrem-se as consequências. Neste instante, porém, há pouco mais que possa ser dito. Tem-se reunido, tem-se acrescentado, jogado ao gato e ao rato pela voz calada e os cadernos brancos de apontamentos daqueles que, sem conspirar, secretamente conspiram. Apesar de ainda não haver um plano, existe fundamento, um motivo magnânimo e superlativo. Uma esperança. Ninguém quer a guerra e eles sabem que estão a perder a força. Tremem, estão com medo. Já nem se entendem a eles próprios. Há muito que deixaram de ter o mesmo controlo e o veem perder-se, escapulir-se cada vez mais por entre os dedos fascistas. Tem de ser agora. Tem de ser agora! Há a aderência dos que apenas estão à espera. Basta só que alguém avance. O resto virá atrás, deitar abaixo essa corja de pulhas. “Vai dar buraco”, vaticina Otelo, “vou ser preso”. Vítor Alves, que partilha com ele o estatuto de major, tenta em vão demovê-lo do golpe premeditado, capaz de comprometer o Movimento. “Não te metas nisto, sai fora”. Entendendo que não havia espaço para voltar atrás, limita-se o primeiro a devolver: “Mas já me meti”.
São 4 horas, nas Caldas da Rainha. O vazio plácido das ruas opõe-se ao frenesim contido do quartel, onde se juntam os militares inquietos e ansiosos. Chegou a hora de vencer o regime. O capitão Armando Ramos dá ordem à coluna do Regimento de Infantaria 5 para acelerar. O Norte já vem a caminho, entre unidades de outros postos. 24 veículos iniciam a marcha rumo a Lisboa, no seu ritmo pesado, o som dos motores ferindo o silêncio e pautando a melodia antes da esperada queda da ditadura. Os rostos são de ânimo e de coragem. O sonho está próximo e determina quem segue viagem. Todavia, há mentes que continuam inseguras quanto à eficácia da intentona. “Vai dar buraco”. O corpo das Caldas aproxima-se da capital. As restantes tardam em chegar. Onde estão os camaradas do Norte, as colunas de Mafra, Santarém ou Lamego? Onde? A euforia dá lugar à frustração e ao desespero quando descobrem que estão sozinhos diante de uma rebelião isolada. Não adianta. Falhou o golpe e o medo cresce, desmesurado, implacável. Sem apoio, nem margem de manobra, resta somente a retirada. Deu mesmo buraco…
Os anos de ditadura
Desde 1926, com a instauração da Ditadura Militar provisória a que sucedeu o atual Estado Novo, que Portugal se mantém atado a regimes prepotentes. Mais de quatro décadas subjugadas a Governos autocratas, repressivos, veiculadores da censura e de uma política militar rígida, que hoje nos atira para a guerra e envergonha no estrangeiro. Oprime-se um povo, em carestia de vida, com a espoliação de direitos. Pinta-se a imprensa com o carvão sujo do “Lápis Azul”, manejado pelos cortes do “Exame Prévio”. Insiste-se num conflito armado, que perdura há 13 anos nas colónias, contra movimentos de libertação a reivindicar a soberania que lhes é legítima. Vivemos assim em guerra, arriscando os nossos para negar a paz aos outros. O Presidente do Concelho, Marcelo Caetano, chegou a prometer mudanças. Uma recetividade, ainda que comedida, a um regime mais liberal. Mas, na prática, apenas mudaram os nomes de algumas ferramentas do aparelho do Estado. Porque os sentidos são os mesmos. A mecânica é idêntica, inflexível. Está tudo igual. Parece não haver lugar para desilusões, porque, na verdade, não nos chegam sequer a oferecer esperança nos ensejos de expectativa. Afinal, que país é este?
Nasce o Movimento
Apesar de Angola, Moçambique e a Guiné reterem um número de tropas lusas que suplanta a fasquia dos 150 mil homens, tem-se verificado um défice de comandantes nas diferentes comarcas de batalha. Como resposta, em Julho de 1973, surge um decreto-lei que promove um processo acelerado e pelo qual oficiais milicianos podem entrar no Quadro Permanente. A medida faz torcer o nariz a inúmeros oficiais de carreira, agudizando protestos que já não eram brandos. No mês anterior, o regime organizara, na Invicta, o Congresso dos Combatentes, destinado a exibir um suposto comprometimento dos militares com a política ultramarina. Tratou-se, no fundo, da continuidade da doutrina ideológica que vem sendo incutida pelo Estado desde 1961, aquando do declarado início dos confrontos e que visa, sobretudo, afixar a ideia da guerra como solução inevitável para o problema colonial.
Todas as cartas, abaixo-assinados ou testemunhos de contestação escritos por membros das Forças Armadas, têm sido banalmente ignorados pelo Presidente do Concelho. “Isto não vai lá com papéis e requerimentos”, desabafa certo dia, o capitão Vasco Lourenço ao seu colega major, Otelo de Saraiva Carvalho. “Temos de fazer um golpe”. É a partir de trocas de palavras semelhantes – em que muitos descobrem comungar sentimentos – que nasce o Movimento dos Capitães, a 9 de Setembro e que, numa primeira instância, apenas pretende focar-se nas exigências militares, como a revogação do decreto. Em pouco tempo, são escolhidas comissões provisórias, encarregues da sua organização estrutural. O mês de Dezembro altera-lhe o desígnio para Movimento dos Oficiais das Forças Armadas (MOFA), sem contemplar no entanto um desvio aos pressupostos inaugurais. Otelo e Vasco Lourenço são eleitos responsáveis pelo desenho da operação militar, enquanto a Vítor Alves é atribuído o encargo da orientação política, que se tem revelado necessária como garantia de força e seriedade. Entretanto, são anulados os decretos que estiveram na génese do movimento fazendo temer a desmobilização da luta.
Exoneração de Spínola e o Golpe das Caldas
Chega, enfim, o ano decisivo que ficará eternamente incrustado nas páginas da nossa História: 1974. António de Spínola, Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, fica a conhecer a posição do MOFA pouco antes de, a 23 de Fevereiro, publicar o livro Portugal e o Futuro – um sucesso nas bancas –, onde defende uma solução política – e não militar – para a guerra do Ultramar. A exposição pública de uma opinião contrastante por parte de uma personalidade afeta ao regime acende a fúria de Marcelo Caetano, que reage de imediato através de um discurso na Assembleia Nacional, transmitido pela RTP. Pelo meio é detido o capitão Vasco Lourenço, posteriormente enviado para os Açores, deixando Otelo e Vítor Alves isolados no comando do golpe. Caetano não perdoa Spínola, destituindo-o das suas funções após a “Brigada do Reumático”, na qual os oficiais-generais das três frentes das Forças Armadas são chamados a concordar novamente com o Governo.
A exoneração de Spínola – em paralelo com a do general Costa Gomes – leva uma coluna do Regimento de Infantaria 5, proveniente das Caldas da Rainha, a convencer-se de que é urgente tomar a ação, precipitando-se numa tentativa mal planeada para derrubar o regime. O argumento era de que este “estava caduco” e que, caso alguém avançasse, os restantes camaradas iriam acompanhá-los, o que não se verificou. Tudo saiu furado, sendo preso um número próximo de 200 militares. Por muito pouco, Otelo não se encontrava entre eles. A ser o caso, Vítor Alves ver-se-ia abandonado na posição de coordenador da “verdadeira” Operação Fim-Regime, traduzindo-se a situação num adiamento sem grandes perspetivas de data futura.
Viragem Histórica
Agora, mais do que nunca, é imperativo arregaçar as mangas. O Movimento – entretanto renomeado de Movimento das Forças Armadas (MFA) – volta a reunir-se para deliberar os prós e contras do malogrado 16 de Março. Perdeu-se uma luta, mas ainda há pernas para andar. A reação benévola por parte da ditadura oferece um certo otimismo, mas vive-se em contrarrelógio. Não tarda e aqueles que foram presos serão questionados pela PIDE/DGS. Se alguém der com a língua nos dentes, aí sim, o Movimento ficará arruinado. Sem mais delongas, Otelo começa a delinear o golpe que terá de acontecer antes do final de Abril. Melo Antunes apresenta a um restrito grupo de oficiais a primeira versão do programa político a adotar pelo MFA, em consonância com o documento O Movimento, as Forças Armadas e a Nação. A 15 de abril Otelo acaba de ultimar a estratégia das operações, que intitula de Viragem Histórica. Distribuídas as instruções pelas várias unidades intervenientes, de Norte a Sul do país, o golpe está então preparado para atacar o fascismo.
Operação Fim-Regime
A falha técnica que contagia o sistema de comunicações montado pelo tenente-coronel Garcia dos Santos angustia os presentes, dando-lhes cabo dos nervos. Está prevista, daqui a nada, a transmissão da primeira senha que irá desencadear a ação e, perante a impossibilidade de ouvi-la, o Posto de Comando no quartel do Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, começa a temê-lo como prenúncio de novos azares. Felizmente, o dispositivo normaliza o seu funcionamento a tempo de ser audível a frequência dos Emissores Associados de Lisboa: “faltam cinco minutos para as 23 horas. Convosco, Paulo de Carvalho, E Depois do Adeus”. À 00h20 a Rádio Renascença exporta Grândola, Vila Morena, pela voz de José Afonso, confirmando o golpe através do segundo sinal. Várias colunas partem de diferentes localizações, dando início à revolução e procedendo à ocupação de postos cirúrgicos. À Escola Prática de Cavalaria, liderada por Salgueiro Maia, está destinada a importante tomada do Terreiro do Paço. E as coisas vão correndo conforme esperado. Sucessivamente, Cristo Rei, aeroporto e televisão vão sendo “conquistados”. Depois de invadida a central, a Rádio Clube Português passa a servir de estação emissora do MFA.
Um momento chave dá-se na manhã de 25, com a rendição dos blindados de Cavalaria 7, a última cartada do Governo para levar de vencido o golpe de Estado. O dispositivo de Garcia dos Santos, capaz de intercetar comunicações, permite identificar o lugar onde se refugiou o Presidente do Concelho: está no Quartel-General da GNR – que fica no Carmo – para onde segue de imediato a unidade de Salgueiro Maia. As horas passam sem que o regime baixe definitivamente os braços. Até que, por volta das 16h30, Otelo recebe na Pontinha o telefonema que há muito esperava atender. Marcelo entregara-se, oferecendo o poder a Spínola, o interlocutor da chamada, que comunicava ter sido convocado ao Largo do Carmo, de modo a efetivar a sucessão. “Considere-se mandatado pelo Movimento”, remata Otelo sem conter a felicidade. Faltava apenas tombar a sede da PIDE/DGS que, teimosa de feitio, apenas desistiu ao final da tarde. Estava assim consumada a queda da ditadura.
Pós-25 de Abril
É irreversível. Em breve, o Movimento alcançará os objetivos a que se dispôs – derrubar a ditadura, pôr fim à Guerra Colonial e instaurar a liberdade e democracia. A imprensa livrar-se-á da censura, renovando o sentido à prática do jornalismo. Terminará o ciclo tirânico de violência e intimidação da polícia política, a PIDE/DGS. Portugal será um país livre, dono do seu destino, libertando-se de um confinamento dilacerante, de um isolamento para com o resto da Europa que olhava embaraçada o interior das nossas fronteiras.
Circulam ainda pequenas doses de ceticismo. Há muita gente que não acredita. Parece mentira, bom demais para ser verdade. Milhares afluem nas ruas sem saber o que esperar realmente daquele 1º de Maio. Haverá discursos de líderes políticos que se encontravam fora, no exílio. Fala-se de Álvaro Cunhal e Mário Soares. Pouco a pouco, vai-se espalhando a crença e soltando emoções reprimidas anos a fio. Ouvem-se cânticos: “O povo unido jamais será vencido!” Levantam-se os cravos, segurados pelas mãos de uma Nação que vê agora à sua frente um caminho repleto de possibilidades. Rumo a um futuro em que a liberdade apenas se confrontará com o avanço do tempo, da idade que não perdoa e que não permite escapatória. E os séculos virão, efémeros, sem esquecerem o dia em que finalmente proclamamos a libertação da vitória.
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Ricardo Marques (colaborador)