Memórias de um ex-caloiro aveirense

Antes de entrar na Universidade Lusófona do Porto, estudei durante três anos na Universidade de Aveiro, como muita gente sabe. Foram três anos dos quais não me lembro de quase nada, porque nunca soube o que andava lá a fazer e ainda hoje, francamente, desconheço. Com algum esforço, recordo-me do curso: Biologia e Geologia.

Nesses três anos, fiz tantas cadeiras como o número de álbuns lançado pelos Beatles no século XXI. Quer dizer, fiz mais um bocadinho, mas a diferença é residual. Questionam-se: «E porque demoraste tu, seu bípede ignóbil, tanto tempo a mudar de área»? Desde cedo andava desconfiado de que aquilo não era o mais indicado para mim, admito. Os meus testes eram vistos como arte rupestre, a julgar pelas notas. Isso deixava-me triste. Mas fui aguentando, a ver no que dava. Algumas matérias não eram propriamente difíceis. E os Power Points chegavam a ser pedagogicamente espirituosos. Aliás, foi num slide sobre bioquímica que descobri que as plantas gastavam mais energia a fazer a fotossíntese do que eu próprio a estudar para fazer cadeiras. A partir daí, a dúvida acentuou-se, embora tenha optado novamente por prolongar a situação. Não quis tirar conclusões precipitadas. Tanto quanto sabia, eu apenas podia ser fraco de metabolismo.

A certeza só haveria de chegar na sequência de um incidente crítico, a meio de uma aula de mineralogia. Esse incidente teve como epicentro a professora. Convém dizer que ela, já de si, era um caso de estudo muito sério. Dizer que parecia um mitra pode soar ofensivo, mas é na verdade um elogio. Tentei suavizar. Se quiserem ter uma ideia aproximada da sua figura, recomendo o seguinte exercício: peçam ao cérebro para invocar a imagem do puto que fazia o «Sozinho em Casa», depois de se ter metido nas drogas. Sim, esse mesmo, todo chupado. Pronto, era a docente.

Macaulay Culkin (ator de «Sozinho em Casa») cada vez mais jovem, saudável e bonito.
Macaulay Culkin (ator de «Sozinho em Casa») cada vez mais jovem, saudável e bonito.

Como é natural, uma das coisas que se fazia nas aulas de mineralogia era a identificação de minerais – que dá uma adrenalina mesmo grande. (Há um fenómeno particular relacionado com a atividade de pegar numa pedra e descobrir qual é. Enquanto a executa, uma pessoa percorre todo o espectro do prazer, atinge um limite orgásmico e, sem ser possível sentir mais felicidade, chega ao lado contrário das sensações, qual volta de 180 graus, com uma vontade descomunal de adormecer, tão lânguida é a sonolência). Basta uma pessoa experimentar uma vez que não deseja outro soporífero. Recomendo-a a quem sofre de insónias; é a forma feliz de resolver o problema. Quem estiver a dar os primeiros passos na paternidade, à hora de deitar, coloque o seu bebé a identificar minerais e esqueça as canções de embalar. Nem precisa de ser um mineral a sério, pode ser um pedaço de asfalto achado na rua, o bebé não vai notar. Em vez da canção, brinde o seu filho com outras coisas: vá a Rans e traga uma pedra calcetada pelo Vitorino Silva para ser examinada. Ou tente fazer com que a primeira palavra dita pelo bebé seja «feldspato» em vez de «mamã». As possibilidades são infinitas, seja criativo. A criança será única em todo o mundo.

Materazzi simula agressãp e leva amarelo. O futebol não é isto, levante-se.
Materazzi simula agressão e leva amarelo. O futebol não é isto, levante-se.

Nas minhas aulas, funcionava do seguinte modo: os minerais estavam dispostos em cima das mesas e cada aluno ia pegando neles sucessivamente, procedendo ao seu reconhecimento. Há várias técnicas que facilitavam a tarefa, como a Escala de Mohs, uma lista que organiza as espécies consoante o seu grau de dureza. Assim, sempre que a dureza era o fator  decisivo para identificar um mineral, sabíamos por exemplo que o corindo era mais duro que o topázio, que o diamante era mais duro que o corindo, e tudo o que fosse mais duro que o diamante eram pedacinhos do crânio do Zidane extraídos do peito do Materazzi, a seguir à final do Mundial de 2006. É importante elogiar aqui o trabalho da universidade, pela férrea determinação na diligência que empregou em conseguir estas últimas amostras, a bem do superior interesse dos alunos.

Amostra de sal-gema lambida por um traficante de metadona depois de um after no Lótus.
Amostra de sal-gema lambida por um traficante de metadona depois de um after no Lótus.

Havia, no entanto, uma maneira muito particular de identificar o sal-gema. Uma técnica rara, infalível e exclusiva desse mineral. Quando a descobri, tive um enorme acesso de pânico e foi então que resolvi debandar. O mitra partilhou connosco a técnica. Pegou no sal-gema e, de rompante, espetou-lhe uma lambidela: «Se lamberem o sal-gema, verificam como é salgado e é assim que o reconhecem», proferiu. Isto é verídico. Tinha estudos, o mitra; dominava o assunto. Quanto a mim, assisti perplexo e embasbacado àquela cena. Passaram-me várias coisas pela cabeça numa fração de segundo. Que pagava mais de mil euros em propinas para assistir a uma obscenidade daquelas. Que nunca mais ia conseguir dormir tranquilo à noite sem um candeeiro ligado. Que estava na presença do anticristo. Por último, que tinha de ir com a máxima urgência à secretaria, a fim de cancelar a matrícula antes do sal-gema me ir parar às mãos com o fito de ser identificado.

E assim fiz. Hoje, três anos depois, as coisas correm melhor a estudar o ramo de jornalismo de Ciências da Comunicação, embora eu continue a ser assombrado por alguns fantasmas. O meu passado aveirense persegue-me. Não há aula em que não imagine os professores a pegar no Correio da Manhã e a dizerem que é possível distingui-lo dos outros jornais através do seu característico sabor a sangue, provando-o com uma lambidela. São visões perturbadoras, mas vou sobrevivendo, um dia de cada vez. À noite é que é o pior.

Ricardo Marques

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